sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

#030

Diz, menina, diz pra mim que estás viva. Diz de verdade que tu, menina minha, és a menina de meus olhos cegos. Diz, minha menina, olha pra mim e diz no olho que tu és minha menina dor, a forma viva do que há de alma em mim. E diz aí, minha menina, com a mão na minha, que a dor que tu és existe, que tu menina é o lindo doer a toa me dizendo que eu existo também.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Marcus vivia como um cara comum. Meio medroso, nunca olhava nos olhos por mais de  dois segundos e meio, sempre usava uma gravata ligeiramente apertada, tinha uma distonia que nunca lhe havia permitido desenhar quando era criança. Nunca pensava em nada próprio que achasse digno de ser dito, e nunca havia namorado.

Quando dormia, Marcus nunca sonhava, ou pelo menos não se lembrava. Em fato, quando dormia, Marcus virava Dylex Mão-leve. Ninguém sabia dizer a aparência deste, era um dos maiores ladrões de rua de todos os tempos.

Um dia, sem razão aparente Marcus parou de viver dormindo. Despertou com uma consciência voraz, um sangue morno lhe drenando o medo gota por gota.

Levantou-se e foi vestir-se com as roupas de um vizinho seu, sem que este o visse. Saiu para a rua e em meia hora arrecadou mais dinheiro que dois meses e meio de seu salário.

Apenas com o olhar, conquistou uma ruiva que havia vencido alguns concursos de beleza em seu estado, fodeu-a a menos de dois minutos e meio do primeiro contato visual.

Fumou, bebeu, riu, patinou, nos momentos em que se deixou ser visto. Bateu em algumas desavenças de Dylex, sem que estes o vissem. Ficaram também mais leves.

No fim do dia, jogou-se num salto de dois giros e meio no ar, abraçando com um sorriso as pedras do rio que corta a cidade.

Foi o único sonho de Marcus.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Se espalha na melhor cadeira, parece esperar algo.
Destilar é a palavra. Um líquido espesso e escuro destila numa taça. O calor que ilumina a sala destila o tempo. O calor de seu próprio corpo destila o contido em sua mente.
Os saltos assimetricamente suspensos brilham um vermelho escuro do sangue que lhe caça por dentro. A sala, a luz, a cadeira, Dolores, tudo é uma imagem estagnada, um calor congelado onde redemoinham dores também escuras.
Dolores em si própria é a mais bela das dores.
Seu peito move-se na pulsação do que corrói, amargando tudo que se vê. Não vê nada, nem Dolores. Tudo gira e evolui num compasso vertiginoso, dentro, fora, em surdo e alto.
Dolores não espera coisa alguma.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Cabide


Uma vez vi um casaco do Al Capone. Era meio moletom meio suéter, assim marrom, azul e creme, como quando a gente quer se esquentar num dia frio. Era um casaco que só se comprava se o dinheiro em si valesse alguma coisa, se não, só ganhando, herdando.
Até hoje esse casaco deve estar em algum lugar sem eu nunca o ter tocado. Não consigo tirar esse cabide de mim.

domingo, 21 de outubro de 2012

Sobre as casas


Se te prometesse levar até as estrelas
e mais além onde dormem os sonhos
Não acharias lindo nem meigo, senão
suporias que o mundo me enlouqueceu
Daí não dançariamos uma valsa cantada
aos pés de Calisto e seu filho, e teus olhos
Não se iluminariam eles com o brilho
dos meus ao ver nossos pés no céu

Andaria até o próximo virar de tempo

para ver onde acaba o teu olhar e voltaria
Pois não sabes que minha vontade de andar
se estende até onde alcança tua companhia
Mas teus pés cansados e meu vento frio
fazem o caminhar meio cego e sucinto
Enquanto minha mente baila sozinha
esperando uma parceria que jamais vem

domingo, 14 de outubro de 2012

São

As horas que passei pensando, incontáveis horas, me deixaram mais vazio, se é possível. Todas aquelas luzes pairando sobre a cidade, as nuvens cegas em cima. Todas as vidas que existem nessa terra, e em tantas outras, essas vidas se dirigem tão exclusivamente dispersas, tão distantes da minha num sentido pessoal. A minha também segue num rumo tão insignificante para todos. Mesmo que eu houvesse carregado ligações em minhas costas, mesmo que houvesse honrado o que chamam carinhosamente de laços, entre outras coisas de afeição e responsabilidade, mesmo que houvesse feito algo a ser lembrado, não esqueceriam todos, eventualmente? Mesmo como homem comum, talvez pai e marido, morrendo eu, não seguiriam vivendo ainda meus familiares? Não estou mesmo perguntando coisa alguma, pensar por si só envolve esta forma de conversar consigo. Constato nos diálogos coisas que, em fato, já sei. Eles ultrapassariam esse corte passageiro na existência, e depois deles, nada mais de mim existiria. Essa vaidade de existir, na maior parte do tempo não a possuo. O que me incomoda é o porque. Não o porque em si, mas o porque para todos. Por que cada um continua vivendo nesse redemoinho de luzes tão distantes quando ninguém lhes disse porque fazê-lo? É fácil existirem dúvidas de tal natureza quando não há um sorriso encantador que lhe turve a vista, alguém que lhe aponte as estrelas. Mas só esse pedaço de esquecimento vale a pena todo o resto? Ou exatamente a falta dele? Não vemos, decerto, tudo como opcional. Creio, sim, que os seres habitantes do redemoinho sequer pensam a respeito, por sabedoria ou falta de aptidão. A conclusão, então, é que o mal em si é pensar. É a origem da loucura. Mas nunca me sinto tão horrivelmente são como quando estou louco.

sábado, 15 de setembro de 2012

Capas


    Camila é aquela pessoa que sempre tem cara de estar triste ou cansada, mesmo quando está feliz, e, portanto, ninguém se preocupa de fato. Nesse momento, Camila está sentada no chão, em meio a um turbilhão de pessoas que provavelmente vão acabar pisando-a se não acharem que ela faz parte da decoração. Em meio a livros, discos, painéis e outras coisas, Camila procura A Peça, aquela coisa que ela não sabe bem o que é mas tem certeza de que pode encontrar. Mas enquanto isso ela procura alguma coisa pra levar, só por levar mesmo, e mesmo assim o faz com afinco, já tem uma pilha de possibilidades nas mãos. Ela tem a coluna flexível em posições estranhas e o nariz enfiado entre objetos de cada prateleira. Tudo são as estantes e a floresta de pernas muito próximas, sente o cheiro do jeans usado da estirada a seu lado. Seu olhar treinado passa rapidamente por capas, preços, cores e nomes, ela se levanta agilmente quando precisa passar para a próxima estante, sem atrapalhar ninguém, mas a floresta se move e o espaço é estreito,  agora da esquerda pra direita, esse não, não, não, não, hm, não, vejamos, talvez, "novo olhar sobre Odair José" - definitivamente não, esse... E um rosto, bem no momento em que desanuvia a atenção e também a vê - outra pessoa está abaixada. Sorriem-se, sem graça, da graça da cena.
- É... a gente tem que procurar bem.
- Pois é.
    De volta para a busca. Essa prateleira não é boa.
- Desculpa interromper... - A moça tem dois livros nas mãos - Ahm, você acha que eles tem cara de coisa de gente metida?
    O monte mal arrumado de Camila cai para o lado enquanto ela pensa na pergunta.
- Assim, desses livros comuns, autores famosinhos, best-sellers, coisa assim? Estou pensando em levar algum desses, mas não sei... Esse aqui parece bom, poesia. O que você acha?
- Ah, bem... Não sei, esse aqui talvez sim... É que aqui não tem coisas muito conhecidas mesmo sabe? Só uma coisa ou outra, a maioria é muito nova ou muito antiga, essa é a ideia.
- Ah, certo. Brigada.
- Nada.
    A cortina de pernas se move enquanto Camila se concentra de novo. Tinha mesmo achado os livros com a cara que a moça descreveu, mas ela parecia ter gostado deles. Não julgar um livro pela capa, pois é.
    Camila tem pequenos arranhões que não sabe de onde surgiram. Mais tarde, depois de passar pelo caixa - havia encontrado uma ou duas coisas interessantes - vê a tal moça passar com um dos livros. Camila não achou sua Peça, sempre aparecia uma coisa que a chamava a atenção, mas acabava não sendo o que ela esperava. Uma pena. Camila carrega uma bolsinha com sua compra banal, coisas boas, sim. Parece mais cansada que o habitual, talvez mais feliz.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012


Existem muitas pontes, muitas jornadas a se escolher. Tantas pontes e tudo o que você quer é queimar sua existência, queimar cada ponte, queimar cada gota de motivo, queimar cada pestana desse olhar maldito que te vive. Tudo o que você quer é, com sua piromania, transformar em cinzas todo Fio de Ariadne, transformar todo teu resto em fumaça e faíscas. Você quer ver queimar os olhos que ama, os olhos que odeia, os seus próprios. Queimar até lágrimas. Não te importa que já te seguissem, não te importa o caminho dos outros, nem as almas que queimaria com tua ânsia sanguínea em derrotar tuas pontes. E cada vez que atravessa uma, que cruza uma estrada, que se apóia em uma pedra, cada vez que sua existência infértil encosta e se aproveita de tudo que lhe estende a pata – fogo, fogo é seu único pensamento.

sábado, 8 de setembro de 2012

Uma forma oscila de mim. Meu demônio tem forma feminina. Bem diante de meus olhos, sua cor turva transcende o resto, minhas mãos tocam suas formas. Tão certo sua natureza ser a minha quanto minha natureza ser a sua, certo como devemos ser feitos do mesmo movimento, assim certo, como deveria eu repudiar tal saimento? E, no entanto, como deveria acolhê-lo? Esta forma, de toque frio e vaguear certeiro, através da qual vejo o mundo das cinzas, sorri quando a olho de frente, e sorri quando quero que minha respiração não a toque. Devo eu, verdadeiramente, não merecê-la, quando, enfim, somos dois fantasmas, juntos?
Por que rezo, se muitas vezes não sei para quem estou a rezar?

Quando pequena, eu costumava escrever desejos, como pequenas orações, em tirinhas de papel.
A fé. Aquela força de escrever. Queria-a de volta.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Da terra

Deito na relva, corpo estirado, meus dedos passam pelo mato macio. As pedras que brotam da vegetação a meus sentidos, fazem parte do incomodo que também sou. Quando abro os olhos, já, a cadeira que me sustenta dá vista para a janela da noite.
Minha alma vem e vai, em tempos indistintos. Segui, seguimos, num túnel feito de tempo e meia visão, como sempre deve acontecer. Agora olhei na janela e vi de um jeito que me assustou. Várias coisas passaram, certamente más e boas. Depois de ter aberto a caixa, tive medo de ter perdido a chave. Talvez a perdi, talvez. Na caixa tinham tantas coisas apontando caminhos diferentes. Mas coisas me assustam.
A cor dos olhos da minha alma tinha mudado. Sinal do fim dos tempos, diria alguma avó minha. Cascatas desaguaram nesse espelho em que vi seus novos olhos. Não sei o que dizer dessa Alexandrias Genesis, se carrego a tristeza do antigo verde, se me enfeito da alegria do âmbar, se me calo, como faço sempre. Sei que senti de novo o cheiro amadeirado de limão, o cheiro que é tão do verde, e ele ainda é meu. E vejo a beleza das palavras, a beleza agridoce do movimento castanho das palavras, este me veio com a viagem. E a tristeza de todas as cores, que está em todas as vozes.
A alma é bela. Não sei quando vem, não sei quando vai. Nem quando vou, se vou, onde fico.
Acaba o papel, fecha-se a janela, a caixa, e as pedras que ainda existem. Acabam meus olhos.
Mas os outros, ou outros ainda vêem.

domingo, 2 de setembro de 2012

When we get bored
we eat
When we get sad
we eat
When we get nothing at mind
yeah, we eat

quarta-feira, 15 de agosto de 2012


De deuses ou homens




Às vezes, desprende-se de mim um vento avulso, com enganador cheiro de novidade, e me pego abandonando, por um tempo, o véu do não pensar. Meus pensamentos, meninos ou velhos, respiram e olham, desconfiados, a luz da atenção; e as memórias sacodem as saias, lembrando como se dança.
Nessas voltas, volta e meia, volto para um par querido de olhos. Caio, então, na correnteza que é pensar, a ponto de poderem ver em meu rosto o nadar. Lembro de pedaços de ti, lembro com vagar o que da última vez sabia de cor e, daí, busco perigosamente cada parte e o todo que te completa em mim. E lembro do meu querer, da confusão que é entender o que és em mim, com todo o enturvamento de meu coração.
“Assim ela é.”, lembro; “A bela, tão incrivelmente bela”, admiro, ciente da beleza; me soa, então, à mente, numa desatenciosa flor de sentimento e anseio, “Minha bela”. Me surpreendo: “Não. Não minha, jamais minha.” Não podes ser minha de modo algum, nunca duvidei disso. Não podes por várias razões, algumas incomensuráveis de grandes, como seres feita em mim do que te alimento e não do que possivelmente és.
“Como fui pensar isso?”, e logo em seguida encontro a resposta. O fato é que a voz tola que soltou esse inocente absurdo pertence somente a uma parte de mim, mais largada e grande que pretensiosa. É ele, esse pequeno gigante, lindo ogro que me habita, ele que, por grande demais que é, te vê em tua fluidez e te quer, com demasiado carinho, e em disparate toma um pedacinho teu para poder chamá-la de sua, como um afago.
Paciência, então, com ele, que ele nada mais é senão outro cativo teu, assim como eu o sou.



domingo, 22 de julho de 2012

Chávenas

Sinto que conheço Eleonor. Eleonor nem mesmo me sabe, no máximo, talvez, como se pegar olhando um hamster numa loja, e depois se continua andando. Conheço Eleanor pela cor, a forma, a mente estranha, e até o cheiro, se me perguntar. Gosto de Eleonor, temo Eleonor, sua estatura, seus olhos meio amargos sempre olhando pra outro lado. E existe a distancia como a entre a platéia e a dançarina no palco. Deixa assim, Eleanor não me precisa saber.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Aquela moça, vai andando bem ali, a moça vai andando com uma boca que é minha. Minha carne, prazer. Dentes, comida, fumaça, minha boca.

domingo, 15 de julho de 2012

Uma noite comum. Uma festa de rua comum. Mas a noite inteira se apossou dos olhos de Miguel. E nem nada. Continuaram andando, conversando, comprando, comendo. A noite não tinha estrela, uma nuvem ou outra corria medrosa nos olhos de Miguel. A moça via, mas não via também, como paisagem de janela refletindo. E redemoinhava a noite no corpo. Miguel tinha uma boa mira, sempre acertava pelo menos um brinde da barraca de tiro. O anjo da noite carregou vento na vista, trouxe um assobio fundo de começo de cegueira, e a noite girava, girava. E Miguel parado. As luzes, como sombras, eram também noite por dentro. Gritava quieto o assobio escuro na vista, um sorriso sem movimento petrificava o seu rosto. Espera, sorria, acerta Miguel! Silêncio.
Vira. Miguel crava o chumbo na têmpora de Catarina.

domingo, 8 de julho de 2012

Einsamkeit

Ela se engancha nos próprios braços. O silencio que entope seus olhos. O calor que amortece suas veias em profusão. Seu sangue solitário percorre possesso nos dedos sequiosos a face rebelde de sua pele. Todo seu corpo pulsa, ela é toda coração. É inegável neste momento, está viva. E sente, vibra, quente de enlevo e frenesi.
E nesses braços seus que a enlaçam com o ardor da morte, repousa a fria saciedade da inconsciência. A saber, seus lábios sem beijos, que o amargo em seu peito não é o início da loucura.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Olhos

E ali Aira chorou. Chorou pra caralho. Como o céu todo chorasse, sua dor e liberdade a contagiaram. Ela chorou como nunca fazia, especialmente tão próxima da sua dor, que sorria junto com ela sem, claramente, perceber. A dor dela havia tempos tinha passado da agonia de roupas pequenas. Ali, naquele dia, a lua dentro dela gritava, com ganas de enlouquecer a realidade, mas Aira sorria. E nadando no aguaceiro que caía do céu, seus próprios olhos afogando, Aira ainda sorria, porque sua dor, tão linda, estava feliz.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Pra Maria


Uma canção, Maria. Uma canção com forma de doce e cor de fumaça. Pra você esquecer a dor, Maria. Uma canção em abraço, no corpo de uma violinha besta. Uma canção de beijo e piada, como tirar o sapato ou tropeçar na escada, e de tristeza, se o cobertor é muito pequeno. Uma canção sem nota e sem pouso.
Pra te fazer bem, Maria. Só pra ser tua.

domingo, 24 de junho de 2012

Noite

Levanto os dedos miudamente tomando posse. Um por um, com uma força sonolenta, tento levantá-los do meu peito. Minha mão também é posse e toque. Os dedos que prendem meus dedos, prendem meu coração, apertam, cingem lentamente o precipitar avulso da agonia. Levanto um dedo após outro, fragilmente, para depois, um a um, agruparem-se de novo em mim, no meu rosto contraído, no meu interior, nas minhas lágrimas secas, nos meus dedos.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Doce


O sorriso, máscara que mostra o rosto de sanidade enevoada.
Danika parece normal. Sadia, como diria um alguém qualquer. Parece alguém que aproveita uma boa taça a lembrar de alguma vitória passada.
Seu rosto, que agora descansa seco e suave, parece satisfeito.
Os lábios, que receberam lágrimas de uma solidão imposta, receberam-nas em relutante revolta, e depois em paz, como destino que se sela, beijou suas lágrimas, então, e sorveu sua própria amargura.
A amargura de ter sua dor rejeitada, de ser excluída do sofrimento que à ela, mais que ninguém, cabia. Penar excruciante e duplamente solitário.
Sim, havia estado lá, nos últimos momentos, em contato direto de espírito e dor, mas não de carne. Ela, antes de todos, soube quando aconteceu. E agora não podia se aproximar, se despedir, desfazer-se de sua derradeira conexão com a mais importante parte de sua vida.
Parte das cinzas do que foi sangue e calor sossega plácida no açucareiro.
Danika meche o champanhe, sorve, sorri.



Persianas

Ela passa o dedo no sapato, no brilho apagado no sapato. Seu quarto reluz a luz que lhe falta. Seus olhos estão cansados, os dedos de pura seda de Regina são frios e tensos. Ela andou, olhou, virou-se e revirou-se dentro dos calafrios que a perseguiam num incessante jogo de incesto e ódio. Quis amar, Regina era uma menina. Uma contradição de inocência e loucura. Ela foi a limpar seu armário, lá dentro, no entanto, na escura limpeza do armário de Regina, havia revolta e perdição, havia a tristeza de todas as gerações, bichos inomináveis e o pouco mais que as letras não a ensinariam. E a lucidez da menina, cansada como a penumbra que repousa inerte na sacada de seus olhos, andou passo a passo para trás da cortina de seu quarto, que fazia o silêncio da tarde. No quarto, encolhida em seu vestido, Regina toca a luz de seus sapatos.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Catherine


-   Vou limpar esse lugar e você nem vai lembrar que isso existiu!

Os olhares determinados se cruzam. Mais uma vez.

-   Escute...
-   Não!
-   Escute! O que você está fazendo?! Você não pertence mais a mim?

Safanões, respirações.

-   Você deve estar brincando!
-   Não! Não estou! Isso acabou, já não conversamos à exaustão? Você sabe! Tire os olhos daí, já disse que vou me livrar delas! Você não entende?
-   Não, você não vai.
-   Sim! Isso...
-   Não. Helena, você não vai se livrar dessas fotografias.

“Não entendo! Sim, vou!”

-   Elas são lindas.

Rostos contraídos. “O que?”

-   São Arte.

Silêncio. Sempre entremeia silêncio. A sala, as fotografias por toda a mesa de centro, forrando o tapete, Helena de regata branca, pálida.

-   São mais fortes do que você jamais vai ser.

Nem uma única palavra cruza os lábios de Helena. O silêncio faz zumbidos nos ouvidos. “Mais fortes do que eu também, estão vivas, Helena!”

-   Lúcia!

“Seja digna, se ainda te restar. Não sei o que mais há de ser, não me pergunte.” Tudo quanto Lúcia diz, sem querer.

-   Ela vai à exposição.



http://www.meganmcisaac.com/view.php?id=3.%20renee%20lilley
Tudo isso não basta. Não aguento mais a dor, e não é uma circunstancial. 

segunda-feira, 28 de maio de 2012


De drogas amorfas
fel de pudor
cicuta inerte
dispor de armas
cru o peito
carne que apodrece
sabor mórbido
espasmos imberbes
Carrancas máscaras
alquimia pútrida
domínios impossíveis
de expurgar dor inata
sumo de ira plácida
filho morto
monstro ativo
já putrefata

domingo, 27 de maio de 2012

Arranca de mim
pura e suave besta
feroz carnificina de medo
quieto furor de vontade
Arranca de mim o silêncio
o atroz sangrar de vazio
todos desejos que fio
tremor de tranquilo enredo
Arranca de mim a verdade
que repousa mórbida sagrada
me dou de refúgio cansada
segregando meu primeiro segredo
Arranca, arranca de mim
de sorriso, fingir e abraço
de esgar e puro cansaço
o que adormece em simpatia
Arranca de mim a agonia
num só triscar de vista
traz tudo que resista
a ser fiel massacrado

quinta-feira, 24 de maio de 2012

preto branco cinza

Luz baixa, sombras, sombras e bestas em toda parte. Uma mente sombria de luz negra alimenta. Alimenta as sombras.
Na escuridão, terríveis monstros se dominam, o dia se dissipa da existência. Medo, existe uma garota lá, em algum lugar, ou existiu. Explosões de silêncio e sibilar de feras. Mentiras, medo, pequenas e grandes corrupções. Num esgar psicótico, a vida assemelha-se à um poço imundo, cru e disforme. Virar de olhos, cegueira da escuridão. Aquele demônio, mente ferina, conta toda a realidade sobre a mentira, sobre o veneno, sangra a carne de verdade. Os demônios só precisam falar a verdade. Pois tudo é mentira.

Se eu fosse sentenciada, você choraria, Luiza? Ou teria vergonha?
Quando chove frio, um todo em mim se encolhe, no fogo se desmancha. Meus olhos são tão vidro que o frio dá boas vindas. Os braços vazios o o espectro dos anos.
Quem escolhe essas coisas? Digo que escolhem.
Sinto muito.
Mas me diga, Luiza, você choraria?

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Uma tora de madeira empata o caminho. A mente caminha, envolta e gasta. Sandália gasta. Passo pra trás, cego. Estanque, balanço. A cabeça abre caminho na madeira tora. A tora ergue-se em evoluções monstruosas. Cabeça e corpo doem madeira adentro. Do outro lado sobra eco, fagulha e lasca. Assimetria de espinhos, farpas e pedaços de mente. A tora passa adiante, um elo entre os veios de inanição e eco. Do outro lado, junção de lixo, traste e pó a inundar a antiga mente. O tempo amontoa corpo e olhos. Nem mais luta, nem desistência, nem movimento. A inércia seca.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

De mordaça

Muzzles
Ando precisando de algo que não posso pedir. Nunca pediria, e, fazendo-o, não encaixaria mais na minha necessidade.
Preciso, de um jeito mudo.

Miriam se contorcia em sua dor de magreza. Fraca, fraca e tanta dor. Michael afasta o copo de perto dela e a olha sem saber o que fazer. Ela chora, sem lágrimas. Faz um barulhos estranhos e treme sua mão até o braço dele.
- Eu deixei ela ir! Eu deixei minha filha sem uma foto!
Michael agarra o pulso dela. Ela o olha nos olhos, do fundo de sua dor.
- Ela não vai lembrar que teve uma mãe, Michael!
Em baixo da mesa sua mão alisa e realisa um papel, uma fotografia.


terça-feira, 8 de maio de 2012

- Olha, essa peninha. Guardei desde aquele tempo. Ela colocou em mim em uma apresentação.
- Mas você só tinha... o que, cinco anos?
- Eu sei Camila. Não sei bem o que eu podia querer naquela idade. Deixa eu te apresentar. Ela era incrível sabe? Era uma fada pra mim. Imagine assim: uma linda jovem de cabelos claros brilhantes e cacheados, numa sala com grandes janelas iluminadas cheia de pinturas e panos coloridos, vestida numa mistura de fada e princesa, de rosas e dourados e glitter, e com olhos radiantes capazes de amansar o mais feroz dos animais.
- Parece lindo.
- E era. Ela nos adorava a todos, até as crianças mais abusadas, nos encantava com suas histórias e sua paciência. Eu tinha uma devoção por ela. Vibrava de felicidade quando ela prestava um pouco que fosse de atenção em mim. Ia dormir ansiosa e simplesmente adorava a hora de ir pra escola.
- Alguém chegou a perceber isso?
- Não sei, talvez ela tenha percebido, ou mamãe, mas devem ter tomado como coisa comum de criança, ou devoção mestre-pupilo, e talvez fosse mesmo. Eu fiquei num estado de desolação quando tivemos que passar de turma. As primeiras séries ficavam separadas das outras. E depois mudei de colégio. Não chegou a ser um trauma, mas eu sonhava que ela vinha me encontrar, um dia.
- Nossa, Dani... Quer dizer que esse foi seu primeiro amor?
- Não sei... Mas eu amo essa peninha mais do que pessoas que eu supostamente deveria amar.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A sica é preta e vermelha, e o azul dos pés dança, passo, passo.
Lágrima sangue se a sorrir levo embora, piso, passo.
De um lado é sombra, do outro é renda, pose, rodopio.
E os toques no chão
os toques macios
do vento que faço
Viro, fim.

domingo, 6 de maio de 2012

As estrias do vento no oceano. As costelas do corpo que amo. As costelas do mar. A pele suave e fluida do mar. Seios, veios, correntes navegadas pelo vento. O calor de frio de nadar. Lar azul no recanto de pele verde. Sem arrepio.
A gente olha para o mesmo ponto. Aquele na janela. A gente respira do mesmo jeito. A gente também sente o mesmo vácuo tendendo a buraco negro, bem ali.
Queria que já estivéssemos prontos. Queria mesmo. Os dois. Mas não estamos, ela tinha que ver. Ela não vê.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

ABANDONADO
E passavam por ele. Bateram na porta, bem de leve, não sabiam se tinha gente. Então viram o mato crescendo, as teias cobrindo, os entulhos largados e os rangidos cegos.
- Vem, vamos embora que isso tá assombrado.
Então continuou tiquetaqueando sozinho dentro do peito com o erro de diagnóstico.

domingo, 29 de abril de 2012

De como se sentir nada.

Permaneça em casa. Ou saia, não importa.


Ligue a TV. Ou veja bons amigos, não importa.


Coma muito, por um longo dia. Ou não toque num prato, não importa.


Olhe as coisas não feitas. Ou as que não adiantam, não importa.


Faça uma infinidade de coisas. Ou não se mova da cama, não importa.













No final sempre tem aquele gosto azedo de comida passada.
























Porque, enfim,
Não importa.

sábado, 28 de abril de 2012

Anei

Era uma mulher difícil. Era muito só de si. Até nos outros que queria só tinha de si, no rosto dos outros tinha só um espelho, uma escora pra se ver. Ainda que algumas vezes só visse os outros. Era gentil em horas estranhas e estranha em horas comuns. Era complicada. Bonita de doer, uma beleza fácil, de porcelana chinesa. Sabia ser muito igual, se encaixar mesmo no grupo que lhe escolhia. Mas, quando não acontecia, largava todos sem dar satisfação e se pudesse não falaria com ninguém por um mês. Falava com uma certa moça, uma moça que lhe falava muitas coisas. Mas a moça e ela eram muito sós. Argumentava em silêncio, cismando o amargo como tragada, do tóxico à inconsciência. E o que dizer, se não lhe falava? Muito difícil era ela.

sexta-feira, 27 de abril de 2012


Manto na cabeça ou guitarra em punho. Eu cuspo, te repudio, me repudio, te quero e não quero nunca. Não sou essa figura habitando tuas esferas de gente solitária. Não é santo meu vômito, não é belo meu mijo. Minhas palavras farsas devias te calar. Me tira daí, não preciso que me tire, eu mesma saio. Esse pedestal limpo e doído, doído de alto, não existe. Essa daí não existe. Percebe? Tira esses olhos baços de enlevo e me enxerga, porra!

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Bagrear

Um animal parindo-se na fronte. Vai estourar, vai estourar! Põe a mão na testa a conter o tufão revelioso e se concentra no nada. Levanta e parece andar sobre bolhas e fumaça, tudo bambeia, até as mãos misturando a palheta da realidade. Sorri, idiota, é idiota. Vem coisas absurdas à mente, repugnantes, mas ficam lá. A porta. A porta bem ali. Andar até a porta, sair, as correntes se quebrando lá atras do pescoço. E todo o universo gira enquanto o mundo continua parado.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Precisamente


Preciso de praiar pra continuar o cheiro do dia. Preciso de comprar algum alcoólico pra provar uma nova bebida. Chá, leite. Preciso de uma saia, uma bem bonita. Preciso de sorrir ao sol. Preciso de um dia sem compromisso no shopping. Preciso de reviver pelo cheiro a sensação do primeiro hotel. Cerâmica. Preciso de comer um salgado numa barraca de feirinha. Preciso de fazer alguém provar laranja. Preciso de ver um por do sol na rua. Preciso de fazer pose sem querer. E um copo de Vinho Ita.



O rosto vai chovendo. Se desmanchando assim, escorrendo, derretendo incolor pelo pescoço, roupa, calçada. O rosto se desfaz esquecido da firmeza natural. Incolor como a mente. E esta face sem rosto, sem cor e sem face, caminha só, dona da roupa molhada e uma mancha rósea do rosto diluído.

domingo, 22 de abril de 2012

Meu tempo


Você fez muito, e falou muito pouco. Você sempre falou muito pouco, quis saber pouco também. Você, sempre julgando errado. Não sei como começou, nem se precisou começar, na verdade. Mas sei que me curei aos poucos, muito aos poucos depois de me quebrar sem perceber. As coisas sempre me atingem diferente, com uma força muito maior do que eu acharia, mas só muito depois de começar é que posso avaliar seus danos. E eu sempre dou de ombros.
Essa cura consistiu, basicamente, em me colar pedaços e mais pedaços de couro velho com uma cola azeda, mas transparente. No final, estava grossa e pesada, mas você não me alcançava e tudo que me batia era apenas perceptível. Isso só tendia agravar com o tempo, ainda que muito gradativamente, e com isso eu aplacava minha conexão contigo, desde cedo tão estreita, e com todo o resto que é teu.
Vinha já me perguntando, por quê? Por que não? Talvez seja o que me falta. E, nem mesmo sentindo tua falta, quis tirar meus trapos, já, pelo contrario, reforçava as camadas e fechava brechas sem esforço.
Então você, numa só tacada, me arrancou toda a couraça que tanto me custou montar, e me vi assim, desnuda e quase contente de aflita pelo seu toque. Essa ânsia, já esquecida, me fazendo racar os dedos na pele inquieta, a querer me atravessar por inteiro. Achei que era isso, afinal.
Mas você não veio. E não viria nunca. E muito antes de eu perceber, já me estava armando de novo, dessa vez com uma armação única, uma capa que se põe por inteiro, que não esquenta mas me separa do emaranhado que me misturava a teus cabelos. Quando dei por mim, já estava plena da consciência que me falhava, a consciência que me arma a me lembrar porque fazer tal coisa.
E agora?
O pior é que não sei. De novo.
Horas alucinadas. Abrir os olhos num despertar nervoso. Essas horas em que tudo monstrifica. Tudo me prende e me quer agarrar, frio e venenoso, tudo é perigo. Tudo e todos. Não tenho armas, nem poderes, nem aliados. Por pouco não me tenho a mim. Tenho calma, ainda frágil, e resistência, bem que tênue. Preciso sair, preciso sair. Mas, dessa vez, não tem saída.

sábado, 21 de abril de 2012



Devia ter mais disso. Mais janelas esvoaçantes desembocando em vida extra. Mais piqueniques no quarto de hotel. Mais do desapego de meu sonho, que me é vocação. Tantas coisas que me são vida, de formas precisas de me querer ainda.
Por você faria certo. Mas se me necessitar ser-me fiel, urgindo sobrevivência, não se irrite.
Estarei bem, você vai ver.
Acomete vestir-me, ainda além, fantasiar-me. Empolgação, sentir uma nova pessoa assomar o espelho, uma pessoa capaz de tudo. Uma bela pessoa.

Ice Tea

Gostava de vê-lo. Gostava de ver seus sapatos no pé da cama. Gostava de como seus cabelos caiam na testa e de como os jogava pra trás com a mão. Gostava de ver como ele bebia, e gostava também da sua bebida. Gostava como Fábio cheirava a canela e mel, e de quando ele se vestia de azul. As janelas apontavam os telhados e a rua fria de chão de pedra. Os telhados. Ele pensava em morar neles. Mas gostava de sua casa no chão, e de como Fábio estava nela.

quarta-feira, 11 de abril de 2012



se calhava de eu escorar no teu ombro, ser perto, como uma pessoa faz, eu podia
mas não consigo, acho estranho só pensar
também acho estranho ser assim, já foi tão fácil, alguma vez
então jogo pra trás a ponta do cachecol surrado dentro do meu peito
e me constranjo de ser isso

terça-feira, 10 de abril de 2012

Não esperava chorar hoje. Mas nessas horas o sono de capricho se atrasa e a mente momentaneamente sem supervisão passeia por onde cuido em não me ater.
Não gosto de chorar porque estou fria e tudo fica muito quente no meu rosto quando choro. Nem gosto desse aperto no peito que me comprime o tórax como se espreme pano de chão. Ou do bolo que sobe a garganta até entupir o nariz.
Não esperava chorar essa noite. Tudo é tão estranho.
Quero dormir.

sábado, 7 de abril de 2012


Tenho afivelada dentro de mim uma vontade raivosa de gritar. Jogar qualquer coisa fora, importante ou não, com um safanão, de encontro à parede. E não sei com que senso de normalidade ainda me seguro parada, com o olhar duro e febril, e continuo com minha vida comum.


Às vezes acho que cada vez mais minha consciência se cansa dessa pessoa que estou sendo. Ela sabe que eu sei. Eu sei que sei. Sei quem não sou.


Pela primeira vez tive plena consciência de que estou vivendo a vida de outra pessoa.



E esse grito que não passa.

Não sei