domingo, 28 de fevereiro de 2010

害怕

Cartas para Geraldine Lespar IV


Estava endereçada alguém chamado Geraldine Lespar. Eu não a abri, coloquei-a numa das caixas de papéis: se ninguém viesse reclamá-la, eu ia tentar achar alguém a quem entregar.
E passaram alguns dias, vieram mais entrevistas de emprego, ansiedade da espera, novos livros. Entrando na terceira semana chegou outra carta para Geraldine. Juntei-a a primeira, a qual eu já havia me esquecido completamente. Eu ia ter de fazer alguma coisa, mas o quê? Fui falar com a minha amiga dona do prédio.
Ao ouvir do que se tratava, ela assumiu numa expressão interessante e disse que achava que essas cartas já haviam parado de chegar. “Como assim ‘parado’?” perguntei obviamente, então ela levantou, virou-se para uma estante cheia de gavetas e abriu a penúltima delas. De lá, tirou um pacote de cartas que depositou sobre a mesa e disse que elas vinham chegando há um tempo, mas que recentemente tinham parado. Contou-me que, no começo, estranhou, pois nunca morara ali ninguém chamado Geraldine Lespar. Tentou os correios para informar o engano, mas a burocracia as extraviava novamente; tentou, depois, achar o destinatário das cartas, mas todas suas tentativas falharam; e era impossível saber quem era o remetente, pois só havia as iniciais. Resignou-se então a recolhê-las, até que cessaram de chegar, pouco antes de eu ir para lá.



Cartas para Geraldine Lespar III



O apartamento não tinha mobília, assim como eu, e precisava de uma faxina, mas, da primeira vez em que lá pus os pés, eu me senti em casa como nunca havia me sentido no meu antigo apartamento. Passava o tempo arrumando, pintando, concertando, e também procurando emprego, e lendo nas horas vagas. Decorrida a primeira semana, eu nunca tinha me sentido melhor e mais viva em meus longos 26 anos. E, para a minha sorte e contra todas as chances, ninguém apareceu querendo alugar.
Aí chegou a primeira carta.

Cartas para Geraldine Lespar II



Eu vinha atrasando o trabalho, cometendo erros, então, num dia, eu acabei perdendo a paciência com o meu chefe, o senhor Bertrand, um cara que nem sequer sabe o significado da palavra ética e que adora jogar a caneta no chão enquanto conversa com as funcionárias, só para ter uma visão melhor da paisagem. Resultou na minha demissão, que, na verdade, eu só não tinha pedido há mais tempo porque assim ficaria sem emprego e sem os benefícios. Diante dessa confusão toda eu me vi sem ter como pagar o aluguel, logo, sem ter onde ficar.
E eu estava remoendo exatamente isso sentada num banco na rua quando falei “Já deu né?!” em voz alta sem querer. Uma mulher, que só então eu percebi que estava ao meu lado, achou que eu tinha falado com ela, e eu estava a ponto de explodir de vergonha, mas alguma coisa na minha expressão deve tê-la preocupado porque ela começou a querer conversar e eu acabei desabafando tudo, assim como estou fazendo agora. Ela provavelmente se apiedou de mim, porque contou que era dona de um prédio modesto, nesse prédio tinha um apartamento vago e, se eu quisesse, eu poderia ficar lá até aparecer alguém, porque ela era imigrante e sabia bem o que era ficar sem ter onde morar nesta cidade. Caiu como uma luva. Eu engoli minha vergonha, aceitei a imensa ajuda e agradeci tanto que ela me pediu pra parar.

Cartas para Geraldine Lespar I

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O que você faria no meu lugar? Tenho todas essas cartas nas mãos, essas cartas destinadas a uma pessoa que eu nem conheço. Já olhei centenas de vezes nos envelopes os floreios da grafia da pessoa que as escreveu, essas duas iniciais.
E por que essas cartas estão comigo? Vou começar do começo.
Eu estou nesse apartamento, que não é meu nem eu absolutamente pago para estar, não que eu me orgulhe disso. Mas esse não é o começo.
Começaram meus problemas quando eu descobri que estava com a pessoa errada, Tom, e há muito tempo já. Ele não é um cara mau, mas eu estava com ele apenas por conforto, e isso já estava me deixando bastante desconfortável. Desde eu descobrir, até conseguir mudar isso, passei por um estado de estresse excessivo e constante. E eu não lido muito bem com estresse, apesar de eu não me lembrar de uma fase longa de minha vida em que ele não tenha me perseguido.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Lucy


      Eu vivo num lugar onde existem pessoas de um jeito e pessoas de outro, mas existem tantas de um jeito, e elas são tão duras e tão acostumadas, que nunca se sabe quem são as de um jeito ou de outro, as de outro geralmente tem que fingir, e, na maioria das vezes elas atuam bem - ou tentam -, pois o medo das reações é tão grande que é maior do que a tristeza de viver uma vida inteira fingindo ser quem não é.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Ruas noites e noites

O tipo de noite laranja, branca e negra, porém de tons desconhecidos. Fria e densa, onde a neblina se move entre as roupas e cabelos, e todo ponto de luz é uma grande mancha clara, porém de todas as cores.


A lua é cercada de um forte brilho azul, como se para ser, ou não, olhada e os fantasmas passeiam facilmente entre cada poste e calçada.


Até o silêncio é úmido, e quem olha de dentro das janelas embaçadas sente um medo de algo estranhamente próximo e, no entanto, também uma vontade irresistível de estar no meio.


Quem ainda está nas ruas sabe que nada está normal e sente que a neblina não é só mais uma coisa, mas ao mesmo tempo, acha-se em tal estado de indescritível e completa surpresa que permanece (ou torna-se) imóvel, de olhos arregalados a olhar tudo em volta, incapaz de tirar quaisquer conclusões, racionais, físicas ou metafísicas.

Black Cigarrets

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Janela sobre o tempo

- Acorda papai – diz baixinho o Pedrinho.

Estava sonhando com minha mãe. Andávamos pela feira e ela falava com meu pai, mas eu não o via. Saímos da feira e mamãe e eu chegávamos à beira do rio. O rio Niúma, que dividia as terras. Do lado de cá eram nossas terras, do lado de lá as terras de não sei quem. Víamos as pedras no fundo e os peixes de tão clara a água. Ela me contava, no sonho, sobre as histórias dos Macauás.
- Não chegue perto do açude da cachoeira do Limião, Bento. Lá tem cobra e lontra, é muito fundo, não é pra ir pescar lá não – dizia minha mãe, com cara séria, olhando pra mim.
Eu, com cara de sim senhora, fazia que sim com a cabeça e chegando em casa, calçava as botinas e ia pescar. Eu queria por que queria pegar uma dourada. Já chegava perto da cachoeira quando via na margem montes de cascas de pitu. Lontras. Nunca fui de ter medo, eu dizia pra o menino que ia devagarzinho até a beira. Toquei a água escura e não enxerguei mais nada. Depois ouvi a minha mãe falando que dia de quaresma não é dia de sair para pescar.

Acordei e lembrei da voz do meu padrinho contando histórias, uma do moço que saiu pra ver a namorada num dia de semana-santa, contra os avisos do pai e da mãe, que diziam que ele tinha outros dias pra fazer isso. Dizia que ele montou a burrinha e saiu. No meio do caminho o moço escutou chocalhos de boi atrás dele. Chocalhos eram o jeito de achar os bois perdidos. A burrinha levantou logo as orelhas e empacou. Olharam pra trás e não viram nada, mas continuaram ouvindo. Cada vez mais perto até que a burrinha se amedrontou tanto que correu em disparada de tal jeito que ele mal conseguiu segurar as rédeas. E ela não parou até chegar na casa da moça, onde estancou na porta, de cabeça baixa e arfando igual ao moço, ficando lá parados e amarelos por um bom tempo. Dizia meu padrinho que o povo da cidade nunca esqueceu o ocorrido. Jurava de pés juntos que era verdade.

As mãozinhas do Pedro faziam risquinhos na minha cara. Fingi que dormia. A Bianca também veio me olhar.

- Papai é velho – dizia a Bia, analisando minhas rugas.

Journal

13 de Junho

Ethel acorda com ressaca, passou a noite estudando comprovações de teses. Vai fazer um café e se arrumar para sair.

Norah abre a janela e vê dois homens saindo do mercado da rua, correndo com mochilas e cabeças cobertas com meias. Senta-se na cama e vai tocar um pouco no baixo.

Collin desenha numa folha Collin com a casaca de soldado que seu pai lhe prometeu de aniversário. Mas Collin preferiria que seu pai viesse antes disso.


Ethel pôs a panela de água no fogo, algum dia perdeu o bule de vista, mas, antes de ferver, pára de se arrumar e pensa no motivo de tantas frustrações e decide não sair hoje.

Norah não lembra de mais nenhuma outra música das que ainda gosta de bater, então põe o baixo de lado e vai à janela de novo: nenhum sinal de polícia na rua. Decide se vestir pra encontrar com a Delphie.

Agora Collin desenha seu cachorro. Não tem um porque não pode, não respira bem e tem alergia a pelos. Chama-se Hugh Bone.



20 de Julho

Delphine escuta um barulho de algo batendo na janela e vai olhar. Chega até o parapeito, olha, mas não vê nada. Decide abri-la e entra, de supetão, um enorme pombo preto como ela nunca tinha visto.

Nathan passou a noite fora. Vai andando pela rua mal iluminada e, passando pelas casas dos vizinhos, imagina o tipo de caos que devem esconder essas fachadas pintadas. Agora, chegando em casa, é que percebe que perdeu as chaves.


Delphine abre o frasco de anti-séptico e limpa os arranhões no rosto. Espera que não fiquem cicatrizes. Ela pensa no que diabos veio fazer esse pombo aqui afinal de contas. Deixou o chão cheio de penas pretas e sua estante bagunçada.

Nathan tem que chamar o chaveiro pra trocar a fechadura que rompeu com o chute. Come um pão com bacon frio e vai pra cama.



14 de Janeiro

Tony pensa em quantas vezes vai ter que arrumar a mala até decidir realmente sair de casa. Sua namorada disse que está sempre com ele. Mas ela não pode sair de casa se não for pra trabalhar ou estudar. Tony acha a distancia uma coisa de doido. Assim como a gravidade.

Albert não sabe o que fazer da vida. Nem da sua, nem da sua filha. Dorence o odeia com todas as forças, ela mesma já disse isso. A mãe diz que é coisa de adolescente, mas Albert não tem muita certeza.

Dori passou anos pensando como seria o dia em que se casaria com um vestido preto. Começou com isso quando teve um sonho revelador onde ela entrava na igreja de vestido branco e apunhalava a si mesma, tingindo o vestido de preto.


Tony algum dia imaginou uma vida diferente. Ele não tinha de viver sua própria vida como quem vê um metrô passando.

Albert cansou de comer feijão. O que lhe salva é uma vez ou outra quando sua colega de trabalho Flora faz tortas de frutas e diz que elas sobraram. É impossível tortas tão saborosas terem sobrado.

Dori sente falta da banda. Sente falta de Antony. Sente falta de oxigênio. Não quer sentir falta da mãe, mas acaba sentindo. Ela que a mandou pra esse lugar. Resolve ir comer cereal para distrair a cabeça.



3 de Fevereiro

Marci está sem inspiração. Isso já é comum desde algum tempo. Suas esculturas já vinham repetitivas e sem graça antes disso. Ela precisa de meios mais criativos de arrumar dinheiro.

Fred apostou no número errado. Pensou no carro vencedor, mas, no fim das contas, acabou arriscando na opinião da maioria.


Marci não vai terminar o livro que estava lendo. No meio, descobriu que a única pessoa decente da estória morria justamente por isso. Cansou de epopéias.

Fred acabou dormindo enquanto suas roupas lavavam. Por sorte elas ainda estavam na máquina quando ele acordou. Mas suas cuecas estavam um tanto rosas e seu suéter vermelho desbotado.



26 de Agosto

Vivian esvazia seus bolsos e ainda não dá pra pagar a conta. Bebeu muito. Bebe pelo seu bolso vazio, pelo seu papagaio, por ser um homem depressivo, por não acertar a maldita bolinha na lixeira e por esse nome idiota que tem.

Otis está à beira de pegar um cigarro. Andou pensando demais no propósito da existência humana. Se agarra à sua estrela de Davi e se concentra em manter o controle.


Vivian não quer mais procurar emprego. Cansou de não ter motivos pra ser aceito. Pensa em se mudar pra rua.

Otis comeu alguma coisa estragada. Não está se sentindo muito bem. O último lugar em que comeu foi uma lanchonete mexicana. Acabou de descobrir que comida mexicana não faz bem a estômago judeu.

Anything else in a dark and real think


Por pouco não caíra por terra com todas suas vontades e seus sonhos. De que lhe adiantara todo esse tempo de resistência? Estava cansada de ter de fazer tanto do que não queria e não querer nada que pudesse fazer. Além disso, o único dom tangível que parecia ter era o de atrair problemas. Não exclusivamente para si, mas principalmente para os outros. Cansava-se em ver as pessoas que mais gostava ficando com problemas cada vez mais graves.
Ainda não caíra por terra. Pensava seriamente em correr de tudo, até de si mesma, pra bem longe, onde nem a saudade lhe encontrasse. Porém, tanto não tinha mais coragem pra continuar e se ver fracassando, como não tinha coragem de fugir e enfrentar tudo sozinha, encontrar um caminho, onde provavelmente também fracassaria.

Sapatos de Domingo

Sendo domingo, era dia de andar. Dia de Cao. Todos os domingos o menino vinha me acompanhar. Cao segurava seu guarda-chuva preto acima da cabeça. Todos perguntavam: – Ô menino, pra que esse guarda chuva se nem tá chovendo, ainda mais desse tamanho? – Eu não preciso perguntar. Cao vive de chinelos e todas as vezes me perguntava, mesmo sem falar, por que eu uso sapatos. Nunca falei a resposta. Até tentei, no começo, dizer algo como: – Homens têm que andar de sapatos – ou – Se chover molho os pés e pego uma gripe – e até – Andar de chinelos me dá calos – e ele sabia que não era isso. Cao andava e dançava, girando o seu guarda-chuva, enquanto conversávamos. Quantos anos deveríamos ter? uns mil e cem anos talvez. Eu mil e ele cem. Me falou que no dia que ele montar um parque de diversões, eu vou ficar em cima do tanque de acertar o alvo, quer ver se eu vou ficar de sapatos. Ele nunca me perguntou o nome. Já o de muitas coisas, mas não o meu. Nem precisava, eu acho, sou mesmo um cara-de-Fulano. Voltando, lá se ia Cao de novo, todos rindo de seu guarda-chuva na cabeça, e nos dizíamos até domingo com o pensamento.

Nali


Anda tronchinho a pequena Amaranda, seus sapatinhos pisando nas pedras molhadas do caminho do parque. Vai pensando na cara do Paulinho quando vir o presente que ela tá levando pra ele. Ainda mais com a fitinha que ela mesma desenhou todinha com corujas, animal preferido de ambos. Paulinho, Babucho como ela chama, é daqueles amigos, às vezes até gêmeos, que os adultos insistem em gozar da cara e perguntar coisas idiotas pra criança, com cara de deboche, ou fazer cara feia se ela fala sobre ele, mas que é um amigo tão amigo que as outras crianças parecem sem graça perto dele. Por sorte o tio Val se dá muito bem com ele, e como é o tio quem manda na casa hoje, deixou ela ir ao parque brincar com o Babucho.

Amaranda pensa numa coisa, que ela tinha deixado de lado por medo do significado, mas que agora toma sua cabeçinha pintando tudo com umas cores estranhas. Tia Célia, esposa de tio Val, disse, num dia em que ela contava sobre uma brincadeira que o Paulinho inventou: “Esse seu amigo, o Babucho, ele é bem legal né? Quantos anos ele tem?” Amaranda não soube responder essa pergunta, sempre achou que ele era do mesmo tamanho que ela. “Sabe Amarandinha, um dia você vai conhecer uma amiguinha de verdade, que outras crianças também vão poder conhecer e que você vai poder visitar e até dormir na casa dela.”. “Eu já tenho um amigo de verdade.” foi o que ela respondeu à tia. Mas agora ela pensa sobre isso. Resolve falar com o Paulinho.

– Babucho, quantos anos você tem?

– Ué Nali, que pergunta é essa? O mesmo que você! – Como ela pensava.

– Ah, tá. Babucho... – Ela não consegue mais pensar no porquê de fazer alguma pergunta.

– O que foi? – Ele já está com uma sobrancelha levantada.

– Hã, olha, trouxe um presente pra você!

Ela entrega o embrulhinho enquanto ele levanta a outra sobrancelha, acompanhando a primeira, já fazendo “cara de ‘brigado!!’”. Eles desamarram o pacote, ele dando uma risadinha alegre olhando a fita desenhada. Quem olhasse de fora ia ver uma menininha esquisita, fazendo uma mímica com as mãos, sorrindo sozinha e em seguida abraçando o ar. Dentro do embrulho brilhavam duas pedras, uma lilás e outra azul, com pequenos desenhos se mexendo por dentro em que, vez por outra, apareciam eles mesmos, mais velhos, mais novos, ou como eles são mesmo, as crianças mais felizes que devem existir e que conhecem cores tão coloridas que as outras cores parecem sem graça perto delas.

Guido e Martin

O céu e tudo o mais escurecia e se cobria de laranja brilhante pelo cair da tarde, o som mais alto era o dos besouros que se preparavam para a chegada da noite. O grande carvalho a seu lado parecia agora, mais do que nunca, um ser misterioso e imponente, que havia vivido em épocas tão outras que ainda trazia consigo um pedaço delas. Sentado no banco de pedra junto da cerca despedaçada, Martin ainda tentava se acostumar, ou pelo menos acreditar de verdade no que estava acontecendo. Ele nunca tinha imaginado realmente como seria se não tivessem mais a tia, Cornelius, ou os outros adultos por perto. Guido estava sentado mais à frente, no mato. Agora eram só os dois.

Guido partira um pedaço de pão e o colocara na frente dele. Martin imaginava no que ele estaria pensando. Estavam ambos na cozinha, Martin sentado à mesa e Guido pegando as coisas que encontrava para um jantar. Ele parecia tão responsável. Martin olhou para a janela. A lua já estava no céu, amarela e cheia, mas com a metade superior escondida por uma faixa de nuvem escura, como uma sobrancelha, parecia o olho de um dragão gigantesco e cinzento olhando para tudo quanto havia lá em baixo.

Estavam os dois calados. Como eles fariam agora? Como estariam todos, o gigantesco Cornelius, a amena tia Dora, os outros ciganos? Provavelmente pensavam ambos sobre a mesma coisa. Martin sentia um pouco de vergonha, mas a idéia de viver livre da proteção dos adultos lhe aprazia, apesar das dificuldades dessa vida, viver como o Assam das histórias que Emily contava. Na verdade eles sabiam que mais cedo ou mais tarde eles acabariam sumindo. Desde que aqueles homens, se é que podem se chamar assim, começaram a pedir “favores” cada vez maiores.

***
Cornelius carregava um baú de proporções pitorescas no ombro, carregava como Martin carregaria uma pedra para fazer pinturas do mato. Carregava e ria um riso afogado no branco que destacava seus dentes e seus olhos. Tia Dora, com seus compridos cabelos gris sobre o ombro, falava pausadamente e indicava coisas para todos, especialmente para Cornelius, que movia, carregava e ria no serviço inteiro, como se não houvesse peso que lhe estragasse o humor habitual. Se bem que, invergando daquela altura tamanho volume, se acentuava para um estranho sua aparencia quase assustadora de alguém muito grande. Emily mexia ocasionalmente nas peças de roupa que despontavam no meio da bagunça em movimento.