domingo, 21 de março de 2010

"LOUCURA
Por Kahlil Gibran

Me perguntas como me tornei um louco.
Foi assim:


Loucura

Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras haviam sido roubadas: as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas. Corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, gritando:

'Ladrões, ladrões. Malditos ladrões!'

Homens e mulheres riam de mim e alguns corriam com medo para suas casas.

Quando cheguei à praça do mercado, um menino trepado no telhado de uma casa gritou:

'Você é um louco!'

Olhei para cima para vê-lo. O sol brilhou pela primeira vez em meu rosto descoberto. Pela primeira vez o sol beijava meu rosto nu, e minha alma se encheu de amor pelo sol, e nunca mais desejei usar máscaras.

Assim me tornei um louco. E encontrei tanto liberdade como segurança em minha própria loucura. A liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido. Pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.


Alguém aqui tem algo a declarar a respeito da sua loucura?"

"Eu, diapócus"[4]

Os que são ricos não são realmente ricos
Morais à parte
Os que têm dinheiro e são ricos não esbanjam ter dinheiro
Os que têm dinheiro e esbanjam tê-lo
Não são ricos
Mas, como é fácil saber das coisas quando se é ignorante
Mas, como é fácil ser ignorante quando se sabe das coisas

"Eu, diapócus"[3]

Tenho os olhos azuis
Cabelos presos
Barriga grande
Pernas tortas
E sapatos azuis

Não sei por que os cachorros não olham para o céu

Cabelos, por virem da cabeça, são incrivelmente simbólicos

Tenho estomago de pássaro, um pássaro que come ferrugem

Tenho pernas tortas

Nem sempre sei onde andam meus pés

"Eu, diapócus"[2]

De fato, não sabes quem sou
De fato, não te mostrei
De fato, também não sei

"Eu, diapócus"[1]

Enquanto este mundo transpira tempo gasto e empregos
Eu inspiro idéias e ar
E suspiro sonhos em um cobertor

Enquanto este mundo transpira prazos
Eu inspiro vento
E suspiro sussurros

Enquanto este mundo transpira tempo
Eu inspiro tempo
E suspiro tempo

Enquanto este mundo transpira
Eu inspiro
E suspiro

Adam Carrel

Havia muita gente na casa naquela tarde. Quase todos os tios, primos, amigos e parentes de todos os graus estavam espalhados pelas salas, jardim, cozinha, quartos e até banheiros. Crianças já haviam sido acomodadas em camas, algumas eu nem conhecia. Mas a desordem não era tão grande, uma vez que a casa não era pequena e que parte dos convidados não se conhecia, o que levava a formarem-se alguns grupos distintos.


No meio de tanta gente havia esquecido de Adam. Até que Vincent, meu sobrinho mais carinhoso, o trouxe pela mão da varanda isolada porque não iria deixar ele lá sozinho. Adam Carrel estivera chorando e Vincent sabia disso, e eu também. Meu sobrinho gostava muito de Adam, meu mais novo amigo-mais-chegado, ao contrário de sua irmã Meggan, que achava-o pouco atrativo e muito taciturno, ainda que ela não soubesse essa ultima palavra.

Tremel


         Tremeluzentes, escuros e apagadiços como as lembranças, voam os pássaros e agitam-se imóveis os galhos da árvore, no passo que me vou, e abandono minha memória ao vento inquieto com todas as suas partículas de poeira que um dia tocaram minha pele e adentraram meus pulmões.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Contradizices[5]












Se te fosses
Eu foria










Caminho

Então, arrumei minhas malas
Despedi-me dos amigos e parentes
Deixei com alguns o que não poderia leva
Livrei-me de embalagens, telefones
Datas, prudências, mágoas
Entre tantas outras tralhas que não serviriam
                                           E saí
Sem saber o que ainda estaria levando
O peso do deixado
Mais leve do que o da ansiedade do trajeto
Fui como quem já sabe pra onde
Mas só sabia que estava indo
Acabando por não chegar em lugar nenhum
                                 Ou em vários deles

Febre

Vários talhos na palma da mão. Pequenos e profundos, vários deles. De folhas que segurei enquanto caminhava. De espinhos escondidos. Talhos da minha faca. Difícil aprender o pôr da luva. A menos que corte-lhe os dedos. De vento. Talhos de velho.

Febre

Um que (aunque) tempos antes se afastava do que de alguma forma fazia mal, ou só talvez, agora retorna braços abertos à lamina e ao aço, sua gelidez atrai como uma sede. Inevitáveis e viciantes cortes, profundos ou não.

Urihi (''Primeira coisa; as árvores vivem'')



Todos os espíritos sussurravam  
Árvores chiavam e sopravam  
    Mananga pegou o punhal
    De todos os fortes
Todos índios tocavam  
As flautas sagradas e tambores  
    E junto à sua mão no punhal
   As mãos de todos os avós
Xamã entrou no fogo   
E dançou com ele   
   Os espíritos xapiripë comandavam
   E fluíam curando tapuio doente

Pistache

Lavandeira


Não, não te assustes, não voe, por favor. Eu só quero caminhar a teu lado.
Observar as mil cores e nuances que tens em teus pretos e brancos. Teus simples movimentos.
Ver teu caminho. E, se possível, ouvir teu canto em que chamas o vento.

Branco Carmim

Orland P. Mathies



– Nunca cheguem perto de mim. – traduzia-se ela.

Matilde Dharen vivia perto da Casa das Árvores de Bolddingross Ville. Não se isolava completamente por não poder conviver com isso. Diziam que era louca intolerante e intolerável. Ela dizia que não podiam chegar perto dela, que seria o fim de quem o fizesse. Acreditava ter uma maldição.
– A anátema ronda por mim. Porém jamais me toca. Amaldiçoados ficarão os que compartilharem minha atenção e minha vida. – Avisava.
Decerto era poeta ou algo do gênero antes de perder o lar. Espalhava que jovens que se aproximassem se apaixonariam e por ela morreriam; que moças a confiariam suas almas e seriam destruídas pelo fel da maldição; que a larva da mentira repugnante vivia à sua espreita; que muitos tolos tentariam defendê-la dos certos e amedrontados, que insultavam-na à distancia, e morreriam de fome ou deprimência; que perderiam os amigos e o lar quem lhe desse confiança e que a única coisa que ela poderia fazer de bom era o que estava fazendo: alertando.
Havia perdido sua casa e sua família durante a guerra. Mas era fato que eram poucos que se metiam a chegar perto, apesar da beleza e do caráter poético e cativante que demonstrava possuir através de escritos e pinturas que fazia na maior parte do tempo, e os que o faziam, bem, não se tinha notícias.
Até então não haviam comprovado nada sobre seu respeito nem sobre suas superstições. Então decidi eu mesmo tentar entendê-la. Ela tinha realmente uma personalidade exuberante como uma borboleta com asas de flor. A princípio persistiu em não me deixar aproximar-me alegando o de sempre. Considerei-me, a ela, como avisado. E ela, com aparente pesar, me abriu as portas.
Em algum tempo tornamo-nos muito amigos. Visitávamo-nos com frequência e eu não entendia nada do começo de toda a estória. Aos poucos ela parecia ter perdido o receio costumeiro.
Ela tinha um caráter realmente cativante. Via e dizia coisas fantásticas, coisas que eu sempre imaginei, outras, que nunca consegui nem imaginar, e que eram uma incrível tradução de meus próprios pensamentos.
Não me interessavam muito mais os livros. Já não passávamos mais um dia sem nos ver e Matilde não parecia mais temer isso. Tinha-se tornado impossível não pensar nela e em seu caráter conquistador. Mal notei como seu lábio retorcia-se para cima em um sorriso irônico quando lhe contava como a via e como não precisava de mais nada para acreditar nela além dela própria. Ela parecia realmente me amar. Estava cego. E eu a amava.
Dias aflitos, sem dormir e sem vida até resolver minhas resoluções. Ainda éramos amigos.
– Por que esses olhos tão escuros meu caro? Quem é a pequena com quem andas sonhando? – dizia-me ela com voz doce, o mesmo sorriso ameaçador nos olhos, como uma serpente colorida. E eu um coelho.
Até que decidi, no meio de mais uma noite insone, correr até ela, tomar-lhe nos braços e me denunciar. A ponto de euforia alcancei-a colhendo flores brancas. Ela estava de vestido igualmente branco com uma das flores no cabelo ruivo esvoaçante.
– Sabia que virias. – disse-me com um sorriso aberto nos lábios carmim. Agarrou meu braço e puxou-me para junto de uma árvore.
– Sempre vêm. – sem entender, ouvi-a murmurar para si mesma.
Sentados, tentei segurá-la nos braços, mas ela segurava meus pulsos na altura dos seus tornozelos. Com o coração nas mãos, tentei dizer-lhe o que sentia, mas ela calou-me com arrogância:
– Sei de tudo isso meu querido. Não pense em mais nada
Ela aproximou-se do meu rosto e o lábio dos meus ouvidos. Senti-a movê-los num sussurro, para mim:

– Foste avisado. – disse-me antes de debruçar-se para beijar-me. Antes de sentir garras gélidas nas veias e ardência nos olhos. Antes da dor lancinante. Antes das estrelas escurecerem e com elas se acentuar o cheiro amoníaco das flores brancas. Antes do silêncio.

"Janela sobre..."

        Ângela Maccini tinha lido apenas dois livros do autor. Desde antes de ler o primeiro, já havia se maravilhado pelos seus pensamentos, a partir de uma das crônicas que o livro trazia no lugar do prefácio na parte de trás. Ao terminar o segundo, imaginou de repente como seria a imagem do incrível uruguaio, e o viu na sua frente. Imaginou como seria se, algum dia, o visse em pessoa, em alguma estréia de livro ou algo do gênero. E resolveu na mesma hora que correria até ele, o abraçaria, seguraria seus cotovelos e perguntaria sobre livros e influências, diria o quanto o admira e mais além disso, diria também suas opiniões, o abraçaria de novo e por fim o esperaria falar tudo que ela não havia deixado pela empolgação; tudo isso sem sair do seu lugar, apenas com uma borboleta que sairia dos seus olhos.

Cartas para Geraldine Lespar VII


Essas palavras pesaram quase como se fossem destinadas a mim. Quem será Geraldine? E S. B.? Quem quer que sejam, algo se passa; por que essas cartas vieram parar aqui, e essa pessoa, S. B., ela continuará mandando cartas as quais não recebe resposta? Essa carta que abri continha uma quantidade razoável de poeira e desgasto, o desgasto das coisas muito tempo paradas. Mas não era, acho eu, das mais velhas. Agora, não acho tanto que fiz mal em abri-la, de certo modo porque talvez seu destinatário nunca a receba, e de certo modo porque é como se não parecesse mais algo que eu não deva fazer. Familiaridade, talvez?

      Passei ainda algumas horas, quase a fio, pensando no conteúdo da carta. É, talvez, desnecessário dizer isso, e também que senti, logo, uma aflição crescente por abrir outra. Uma próxima revelação, uma nova peça, que se uniria à primeira. Mas não fiz isso, não imediatamente.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Cartas para Geraldine Lespar VI

    “ Geraldine,

      Estou diferente. Não sonhei mais sonhos bons essas noites. O nosso anel me escorrega do dedo agora. Desde a última vez, eu sinto como se minhas pálpebras fossem indivíduos estranhos, com vida independente da minha, e, o que vejo, são apenas sequências de imagens que, na realidade, não alcançam minha mente. Dizem que não estou bem, mas nenhum deles sabe o que tenho, o que realmente tenho. Não espero mais que venhas. Mas não sei com quem mais contar neste mundo, e, apenas por lembranças, ainda mando esta carta.


S. B.”

Cartas para Geraldine Lespar V

Ela me pediu para guardá-las e recolher as próximas que viessem a chegar, ela estava extremamente ocupada, e eu poderia fazer isso enquanto estivesse aqui. Bem, dito isso, o telefone tocou e ela ficou realmente ocupada, dei meia volta e voltei ao meu apartamento, junto com o pacote. Passei horas olhando aquele maço, sem saber o que fazer. Alguma coisa nesta história me envolvia, tanto quanto este apartamento.
E aqui estou eu, olhando ainda para estas cartas, não me contendo mais, pensando o quanto seria errado, só para me convencer a não abrir nenhuma delas. Mas alguma coisa está me pedindo para fazer justamente o contrário, e talvez não seja só minha curiosidade.
Numa dessas noites de insônia, não me aguento e abro uma das cartas.