domingo, 4 de dezembro de 2011

Circo Negro

Quando eu era uma fagulha ainda, toda joelhos e cotovelos, me levaram no circo. O dia tinha sido cheio de coisas que a família não demonstraria em público, aquelas que existem mas todos escondem na frente da sociedade, então de noite me levaram ao circo pra certificar que eu não entendia nada e que não pensaria nisso.
Era um circo como nunca tinha chegado na cidade, e que, imagino, nunca mais chegará. Merecedor do nome, invergava imponentemente uma bandeira grande e preta, que a mim se pareciam com os brasões que aprendia a reconhecer, em suas três tendas médias e na tenda principal e maior de todas.
Me perguntavam coisas como se eu gostava de circo, palhaços, se eu estava animada, se estava achando bonito, se queria algodão ou amendoins. Outros, conhecidos ou não, diziam coisas como "Que menina bonita, tão quietinha!", felicitando meus responsáveis, mas sem manter o olhar sobre o meu por muito tempo.
Eu, como criança de olhos negros, me limitava a acenar sim ou não quando lembrava e observar.
Demorou bastante ainda para o show da noite começar, vimos os animais, taciturnos, vimos dançarinas, artistas, pessoas alegres e vendedores.
Os adultos juntavam-se a outros em conversas comuns e chatas e me deixavam andar por perto, confiavam-se na minha falta de demostrações de interesse. Dei algumas voltas já desinteressada, confessadamente cheia de tédio. Fui andando pelas laterais das tendas, cansada de desviar das pessoas, olhava as brechas e a grama que roçava os cantos da lona e meus sapatos. Em dado momento tive a impressão de ver um par incandescente de olhos, duas estrelas púrpuras numa meia face marrom parcamente iluminada. Não sei que partes do meu cérebro infantil se desativaram nesse momento, mas fiquei estática enquanto um chiado emergia na minha cabeça, como alguém pedindo silencio. Seja o que tenha sido, continuei andando e dando voltas até a hora do espetáculo.
Dentro da tenda principal outro mundo começou, cheio de brilhos, gritos, expectativas, desafios à crença e a indiferença. Coisas que já encantariam quase qualquer adulto maravilhavam as crianças, mesmo as mais velhas. Qualquer coisa que valia a pena viver, esquecer o dia inteiro, trocar pelo dia inteiro, pela vida inteira.
Tudo isso eu teria visto. Nunca mais eu teria esquecido. Seria essa minha grande memória de infância. Mas a magia que se instalou em minha memória foi outra. Tudo que eu me lembro daquela noite é ele. Eu o vi parado ao lado da entrada da tenda, embaixo da arquibancada, as faixas de seu corpo iluminadas pela luz do picadeiro. Aqueles olhos. Aqueles olhos que você lembrará para o resto da vida. Aquela escuridão em todo ele. Ali minha alma foi roubada para sempre.

Um comentário:

  1. A caracterização do tom de infância que foge; o adiamento; a indefinição; o perceber escuro.

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