quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Torvelinho Dia e Noite [trecho]

(...) - E o senhor vem numa boa época - disse Dr. Gumercindo. - Vê como a cidade está bonita, com flores se abrindo por toda parte?
- O senhor vai gostar Sr. Abreuciano. A cidade mudou muito, e quase que de repente, não foi, doutor? As pessoas ficaram mais simpáticas. Até os fregueses ranzinzas, reclamadores, agora me tratam diferente. Estamos muito felizes - disse o Sr. Jamil.
O senhor Abreuciano havia notado uma mudança para melhor em tudo, inclusive nas pessoas. Era a recompensa que as forças invisíveis estavam dando aos torvelinhenses por tudo o que eles haviam sofrido.
- O senhor falou em forças invisíveis. Que forças? – indagou Jamil
O Sr. Abreuciano explicou que forças invisíveis era como ele chamava os aliados que a gente tem mas não vê, e no entanto nos rodeiam e nos governam. Às vezes parece que eles nos abandonaram, mas deve ser por estarem ocupados com outros deveres.
- O senhor é religioso? – perguntou Jamil.
Abreuciano opinou que todos somos religiosos, cada um a seu modo. Vivemos cercados de mistérios que a inteligência não penetra, e o único jeito de convivemos com eles é atreves de rituais que podem ser até muito simples, contanto que indiquem o nosso reconhecimento de que vivemos no escuro e precisamos de intuição, de toques, para evitar colisões perigosas.
Todos ficaram pensativos, digerindo a dissertação. Por fim, Dr. Gumercindo indagou:
- Essas forças invisíveis, o senhor já teve algum contato com elas? Quero dizer, já teve algum sinal indiscutível da existência delas? Como é que elas se manifestam?
O Sr. Abreuciano, que estava encostado no balcão, de pernas cruzadas, cruzou os braços também, e disse pensadamente que a maioria das pessoas se contenta com ver só a parte do mundo que lhes é imediata. Outras, mais curiosas, olham mais longe e mais fundo e assim ampliam o campo de conhecimento e conseguem perceber coisas que a maioria não percebe. Ele achava que nem sempre foi assim: os homens antigos viam o mundo em sua totalidade e participavam dele totalmente. A partir de certa época, alguns homens foram se embaraçando em assuntos menores e com isso perdendo a capacidade de visão. Como o domínio desses assuntos menores dava aos que se concentravam nele uma ilusão de poder, essas pessoas passaram a ser invejadas, e consequentemente imitadas, e se tornaram a maioria. Os poucos que recusaram a ilusão de poder e se mantiveram ligados, conseguiram transmitir a alguns o interesse pelo mundo total, mas aí já era uma minoria excêntrica e marginalizada. Até esses excêntricos, também chamados de místicos, isto é, os que frequentam as zonas do mundo onde a maioria não se aventura, seja por medo ou por não saber como, são olhados com um misto de desprezo e inveja, racionalizada na velha filosofia de poder, que foi a causadora da separação inicial.
Novo silencio todo mundo pensando. Até que Dr. Gumercindo arriscou um comentário:
- Isso é que eu não entendo. Se eu tivesse um amigo... místico, eu ia tratá-lo na palma da mão, ia querer aprender com ele como é que se atravessa a fronteira para o mundo invisível.
Para o Sr. Abreuciano isso indicava que Dr. Gumercindo tinha parentesco com os místicos; porque a maioria reage nesse assunto como um pobre lavrador reage contra a pessoa ou animal que fareje o seu cercado. O mundinho de cada um é o seu cercado, aquele espaço que ele ocupou e amansou a duras penas, e tudo que destoa dele é visto como uma ameaça. Por isso é que a vida dos místicos é dificultosa. A faculdade deles de ver além é na verdade uma condenação. Eles precisam olhar muito onde pisam pra não levar chumbo. Ninguém quer ser invadido.”

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